Índio
Ticuna durante ritual, Belém do Solimões, Terra Indígena Évare I, Amazonas.
Foto: Frei Arsênio Sampalmieri, 1979
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Os mitos contam como as coisas chegaram a ser o que
são. Contam como as divindades, os homens, os animais e as plantas se
diferenciaram. Os rituais, por sua vez, fazem o caminho inverso dos mitos. E,
não por acaso, eles se dispõem muitas vezes a contar o mito, a recriar o mito,
promovendo uma espécie de retorno a esse tempo de indiferenciação geral em que
divindades, homens, animais e plantas se comunicavam entre si, e produziam sua
existência por meio dessa interação. As populações indígenas acreditam que
esta comunicação, esta interação deve se dar de maneira mediada e é
indispensável para a produção de pessoas e da própria sociedade. Afinal, é do
cosmos mítico que são extraídas as matérias-primas para a constituição das
pessoas e da sociedade. Perder de vista esta comunicação, esta interação é
entregar-se à inércia, à permanência num mundo sem sentido.
Os rituais de iniciação, por exemplo, consistem em
fazer com que neófitos [iniciantes] sejam separados do convívio social e,
assim, se submetam a um estado de liminaridade no qual a fronteira do mundo
social, humano, parece borrar-se. É somente passando por esse estado de
liminaridade que o neófito poderá voltar a este mundo, agora de maneira
transformada.
Os rituais funerários, de sua parte, consistem em
separar os vivos do morto, fazendo que o último retorne ao outro mundo, mundo
não-humano. Toda morte coloca os vivos, nela envolvida, num estado de
liminaridade. Por isso não é de se espantar que os rituais funerários ou
pós-funerários sejam, entre os povos indígenas, muitas vezes aproveitados para
a realização da iniciação de jovens.
Podemos dizer que essa comunicação ritual se
estabelece entre seres humanos e seres não-humanos, como espíritos, divindades,
donos de espécies naturais, subjetividades que habitam corpos animais e
vegetais etc.; todos dotados de diferentes potências. Mas não podemos esquecer
que essa comunicação acaba por se fazer entre pessoas de proveniências
distintas: gente de outras aldeias, de outros territórios e mesmo de outras
etnias.
Os rituais indígenas são uma celebração das
diferenças. Em primeiro lugar, das diferenças entre os seres que habitam o
cosmos. Os humanos sabem que muito do que possuem – aquilo que chamamos de
cultura – não foi meramente “inventado” por eles mesmos, mas sim tomado, no
tempo do mito, de outras espécies, e mesmo de inimigos há muito não vistos. Os
rituais indígenas são, além disso, uma celebração das diferenças entre os
próprios seres humanos, diferenças sem as quais não haveria nem troca nem
cooperação. E para celebrar essas diferenças uma intensa trama de prestações –
de comida e bebida, sobretudo, mas também, em certas ocasiões, de cantos e
artefatos – é posta em movimento.
Contribuição : Dirce Maria Cruz Ribeiro
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