por
Pedro de Niemeyer Cesarino (2009)
"Xamanismo" é algo que não se
reduz a uma só definição ou explicação. Religião, crença, ritual, sistema de
pensamento, ontologia, configuração de mundo: tais são algumas das categorias
polêmicas que surgem à mente quando se trata de fazer uma breve apresentação
sobre o assunto. O termo, genérico e mal compreendido, é empregado para
designar um sistema ritual dos mais antigos da humanidade, partilhado por povos
que se estendem da Ásia até o extremo sul da América. "Xamã" parece
derivar de çaman, palavra empregada pelos Evenks siberianos para designar os
seus especialistas rituais. É análoga a "pajé", derivada por sua vez
de termos das línguas tupi-guarani também utilizados na referência a tais
especialistas. Cada uma das línguas ameríndias possui seus termos equivalentes,
em qualquer parte dos três continentes.O xamanismo representa, assim, uma base
comum aos povos autóctones da Ásia e das Américas, já que este continente foi ocupado
por sucessivas migrações provenientes do primeiro. Mais antigo, o xamanismo foi
sobreposto por grandes religiões tais como o budismo, o confucionismo, o taoísmo, o
cristianismo e o islamismo. Algo análogo ao que ocorre no Brasil, quando os
xamanismos indígenas passam a se defrontar com o credo católico ou protestante.
Esta é, aliás, uma boa maneira para se compreender um dos traços essenciais do
fenômeno: o xamanismo nem sempre desaparece no enfrentamento com grandes
sistemas religiosos. Talvez porque não possa ser compreendido exatamente como
uma "religião", ele acaba por se infiltrar, por subverter ou por
sobreviver às tentativas de conversão que, no Brasil por exemplo, são
realizadas desde a invasão européia. Tratamos, afinal, de uma certa organização
ou configuração de mundo que não possui um dogma estabelecido, um conjunto de
doutrinas ou alguma escritura sagrada, uma liturgia fixa, um corpo de
sacerdotes organizado em torno do Estado e, mais importante, uma fé em alguma
divindade única. Difícil, portanto, definir o xamanismo como uma crença. Tais
ausências são especialmente válidas para os povos indígenas das terras baixas
da América do Sul, ou seja, para aqueles que não viveram sob o domínio de
organizações estatais, tais como o império Inca. A mediação exercida pelos
xamãs amazônicos tem mais a ver com uma certa diplomacia, uma forma de traduzir
e de conectar os humanos viventes à multidão de espíritos, de almas de mortos e
de animais que constituem as cosmologias indígenas. Nestas, não há exatamente
deuses que encarnam ou que detém poderes sobre fenômenos naturais, para os
quais são erguidos templos e oferecidos sacrifícios (como no caso dos Aztecas
ou dos Mayas). As entidades com as quais os xamãs indígenas se relacionam são
de outra ordem. Ao invés de despachar uma vítima sacrificial como intermediária
entre deuses e humanos, os xamãs vão em pessoa encontrar os espíritos e demais
sujeitos que habitam os seus mundos.
Xamanismo sem xamãs
O xamanismo, aliás, não se concentra
tanto em cargos definidos, tal como no caso dos sacerdotes, mas sim em
processos de transformação e de transporte para as moradas destas entidades
outras. Não por acaso, algumas sociedades indígenas, tais como os Parakanã do Xingu, possuem um xamanismo sem xamãs.
Na ausência de um especialista ritual determinado, são as pessoas comuns que,
em sonho, encontram espíritos e trazem deles os cantos que serão executados
mais tarde na aldeia, quando o sonhador já estiver desperto. É como se todos
fossem de alguma forma um pouco pajés e pudessem, ao seu modo, estabelecer
contato com a multidão de entidades invisíveis. O surgimento súbito de um xamã
é também algo possível: em um momento de crise, em geral caracterizado por uma
grave doença, um sujeito pode começar a estabelecer contato com "pessoas
outras" que renovam seu corpo, trocam seu sangue, introduzem elementos
mágicos em sua carne, ensinam-lhe cantos. Diz-se então que a pessoa
"empajezou", transformou-se em uma pessoa outra. Agora será dotada de
"um outro olho", capaz de enxergar o que é invisível às pessoas
comuns (ao menos em seu estado desperto).
Todos esses fenômenos estão
relacionados a uma composição básica da pessoa nos mundos indígenas. Há sempre
uma divisão entre o corpo e ao menos duas almas ou duplos – uma que se
transformará em fantasma ou espectro após a morte, outra que terá um destino
especial, celeste em muitos casos. O corpo, porém, não é um feixe fisiológico
tal como o concebido pelos médicos ocidentais, mas uma espécie de invólucro, de
envelope, carcaça, pele ou roupa que abriga as almas de aparência humana. Em
estados liminares tais como sonhos, doenças, ou ingestão de substâncias
psicoativas, a alma sai de seu corpo/roupa e perambula por aí. Vai encontrar
outras aldeias, espíritos, homens e mulheres que os olhos "do corpo"
não conseguem enxergar. É nesse ponto que mito e xamanismo se relacionam.
O que é um mito?
Em uma entrevista, fizeram a Claude
Lévi-Strauss a seguinte pergunta: "O que é um mito?". E o antropólogo
assim respondeu: "Se você perguntasse a um índio americano, é muito
provável que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os
animais ainda não se distinguiam. Esta definição me parece muito profunda"1.
As narrativas míticas ameríndias de fato giram em torno deste tema: houve um
tempo em que a imagem geral do cosmos era uma imagem "humana", todas
as espécies partilhavam uma forma humana genérica, até que algum evento de
ruptura interrompeu tal estado primeiro, instaurando os limites, as diferenças e o problema da
invisibilidade. Daí em diante, os animais, frequentemente por conta de algum
erro que cometeram nos tempos míticos, ganham corpos/roupas de onça, anta,
porco do mato ou de outros bichos, mas continuam com a mesma alma humana que
sempre possuíram. Os humanos, por sua vez, são os únicos que mantém o seu corpo
à semelhança desta alma genérica, ainda partilhada por todas as entidades que
compõem isso que chamamos de "natureza".
"No começo do
tempo, quando nossos antepassados ainda não tinham se transformado em outros,
éramos todos humanos: as araras, os tapires, os queixadas, eram todos humanos.
Depois, esses antepassados animais se transformaram em caça. Para eles, porém,
somos sempre os mesmos, somos animais também; somos a caça que mora em casas,
ao passo que eles são os habitantes da floresta. Mas nós, os que ficamos, nós os
comemos, e eles nos acham aterrorizantes, pois temos fome de sua carne"2.
Ora, mas os tempos míticos não se
esgotaram. Para os povos indígenas, eles continuam suspensos ou paralelos à
atualidade. Muitos animais seguem pensando para si mesmos que são gente,
enquanto nós os enxergamos em seus corpos/roupas de bicho. Quando o duplo ou
alma de uma pessoa sai para fora de seu corpo, ele pode ver aquilo que antes
permanecia velado: as aldeias sub-aquáticas e suas festas; o duplo ou alma
humanóide de uma arara; uma árvore que, para os olhos alterados, se mostra como
uma sociedade, pois os periquitos podem muito bem se conceber como pessoas e
viver, portanto, em malocas. O antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro formulou bem o problema através de um contraste interessante: os mundos
indígenas são multinaturalistas, concebem uma multiplicidade de naturezas (os
diferentes corpos dos bichos) e uma unidade da cultura (a cultura humana
partilhada por todas as espécies). O mundo ocidental, por sua vez, é
multiculturalista, imagina uma multiplicidade de culturas (chinesa, francesa
etc.) e uma só natureza. Nesta concepção, animais são radicalmente distintos
dos humanos por não possuírem, precisamente, uma alma pensante análoga à nossa
e, portanto, uma cultura. Aproximam-se de nós por serem mamíferos, por
partilharem de uma natureza comum, enfim. O pensamento indígena pressupõe o
contrário: os bichos são próximos de nós porque para si mesmos se concebem como
gente e possuem, portanto, uma cultura (malocas, redes, festas, pinturas
corporais, cocares e adornos) semelhante a esta visível nas aldeias. Mas os
corpos são outros.
E o xamanismo?
Ora, isso tudo é o xamanismo, essa
especial constituição de realidade e de ética cosmológica. Os xamãs, diplomatas
ou tradutores, como diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, são os
responsáveis pelo arriscado trânsito de almas para além dos corpos. Um homem
comum pode, na doença por exemplo, ver a gente-sucuri em suas casas (que sadio
ele veria como o rio) e ser seduzido por uma bela mulher-sucuri. Ele passaria
então a viver ali com a sua família sub-aquática sem se dar conta de que, na
outra aldeia, seu corpo definha e preocupa a sua família "humana".
Ele está doente porque incompleto ou vazio, pois a alma ou duplo está alhures
com a nova mulher-sucuri. Um xamã deverá então trazê-lo de volta ao seu corpo
e, assim, resolver este problema social espalhado pelo cosmos. Situações como
esta acontecem com freqüência nas aldeias indígenas. O xamã ou pajé está, a
rigor, acostumado com tais trânsitos. Ele já é outra pessoa, pode ter uma
família com os humanos-outros, vive sempre entre duas referências, transita
entre as gentes dos animais, os espíritos, as almas dos mortos. Costuma trazer
de lá notícias através de seus cantos e, assim, integra o enorme contingente de
entidades invisíveis ao cotidiano das aldeias. Não por acaso, alguns índios da
Amazônia costumam dizer que o pajé "é como um rádio". Um dos grandes erros está em imaginar
que o xamanismo é uma espécie de mística new age, ou então uma tradição fadada
ao desaparecimento pelas transformações sociais e pela problemática idéia de
aculturação. O xamanismo – esta rede ou malha de conexões entre princípios
anímicos que vivem por detrás dos corpos visíveis – é algo por princípio
criativo e voltado para a alteridade. Exímios negociadores das multiplicidades
sociais presentes desde os tempos míticos, os pajés sabem traduzir em seus
próprios termos as novidades de nosso mundo.
Os Maxakali são
um emblema disso. Confinados em uma terra de Minas Gerais agora repleta de
capim, privados da caça e do acesso à paisagem na qual outrora viviam, não
deixaram entretanto de possuir uma intensa e fascinante produção ritual.
Antenados, fizeram em certa festa um telefone celular de argila, utilizado para
a comunicação com os espíritos das lontras3.
Notas
1.
Lévi-Strauss, Claude & Eribon, Didier. De perto e
de longe – entrevista com Claude Lévi-Strauss. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1988.
2. Kopenawa apud Viveiros de Castro,
Eduardo. "A floresta de cristal". Cadernos de Campo 14/15, 1998, pp.
319-338.
3. Imagens do filme Hemex e Xunin, Terra Indígena do Pradinho, 2005
(acervo de Rosângela de Tugny).
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